terça-feira, 29 de novembro de 2016

Boletim 303.

ABRINDO E FECHANDO A PORTEIRA.
Gumercindo Saraiva.
"Mas valiente do que feo".
Seus feitos foram notáveis na Revolução de 1893, combatendo de espada em punho o governo impopular de Júlio de Castilhos. Eis a história que os livros me contaram, assinada por Odilon Abreu.

Corria o mês de fevereiro de 93. O rebuliço no Rio Grande alvoroçava caudilhos e caudilhetes contrários ao governo castilhista. Gumercindo Saraiva era estancieiro forte no Uruguai e Santa Vitoria do Palmar. Filho de pais brasileiros se achava no direito de pelear junto aos federalistas. Com uma tropa bem montada e armada, o caudilho cruzou a fronteira ocultando-se no rincão de Ana Correia, entre os rios Jaguarão e Jaguarão-Chico. Vinha para se encontrar com o Cel. Jóca Tavares, a fim de engrossar as tropas rebeldes, que já andavam por volta de três mil homens.
Quando esse pintor bizarro jogou o Sol no abismo do fim do mundo começou a colorir o poente, e a tropa se acantonou numa canhada bonita. Gumercindo distribuiu as ordens para o acampamento. Pelo sul um caponete abrigava e ocultava a gente do caudilho. Na chapada que se erguia ao norte, Gumercindo postou uma sentinela para proteger de qualquer surpresa o sossego dos insurretos castelhanos.
                        - Todo listo, mi comandante! Disse marcialmente o ordenança de Gumercindo, um tipo melenudo, com barba de semana e meia esse ordenança. Dente de ouro exibido na linha de frente da boca. Chapéu com barbicacho de fleco e aba tapeada na testa. O beiço rachado lhe dava uma voz fanhosa. “Todo listo, mi comandante.” De fato, em pouco tempo os vaqueanos já estavam com uma rês carneada, a título de requisição guerreira. E nessas ocasiões o puxirão se faz de vereda. Se põe esperto o mais lerdo dos andarengos. Vala grande cavada no chão, as carneadeiras descobrindo os espetos nos galhos retos das guajuviras, lenha farta, fogo grande, carne gorda e caneco de branca de mão em mão. Mate, charla e patacoada. Palas no chão, mão nas cartas, e na ponta da língua os versos debochados do truco. E de repente, atenção! O sentinela firma os olhos e descobre no horizonte um vulto que vem crescendo. Num galope chasqueiro vem um gaudério batendo estribos. Ele dá o aviso: “Se aprochega um  cavaleiro Dom Gumercindo” Então, de relancina o chefe forma uma patrulha com dez voluntários. Ordena uma espera na ponta do capão pra deter o intrometido. No lusco-fusque na noite o índio ia passando a lo largo, quando se viu cercado. “La fresca, tô perdido, pensou. E o chasque o patrão não vai chegar ao destino.” Conduzia uma mensagem trocada entre chefes castilhistas. Preso, foi levado à presença do caudilho. Não apeou do cavalo. Tipo miúdo e entroncado, com lenço branco no pescoço e entonado como pica-pau em tronqueira. Um nariz grandalhão e achatarrado, escondendo um eito de bigode esfiapado, sem apuro nem jeito. O mulato meio pendendo pro índio, tinha séria sua cara de lua escarrapachada. Foi logo despido da adaga de quase metro e do nagão quarenta e quatro. Tilintavam as rosetas das esporas de papagaio comprido, abraçando a barriga do flete.
                        Os homens de Gumercindo se alvorotaram com a petulância do tipo. Foi preciso cinco homens pra desgrudar o taura do lombo do cavalo. E ele quieto. Gumercindo, ex-delegado de polícia em Santa Vitória, no fim do Império, tinha prática num interrogatório. Tanto podia falar castelhano, como muito bem o português, mas este só falava com caudilhos de igual patente. Antes, porém, que Gumercindo começasse a inquirição, o ordenança se antecipou atrevidaço. “Pucha Che, será que sos tan valiente como feo?” E o índio quieto. “Quién eres? De donde vienes? Para donde vás? Que andas haciendo?” Indagou o caudilho. “No le digo porque ando de próprio.” “Sabes com quiém estás hablando?” “Sei. Com o castelhano bandido Gumercindo Saraiva”. “Si yo cayeras em tus manos que harias conmigo?” “Le passava o lenço colorado”. “Maténlo.” Ordena seco Gumercindo. E o índio quieto. A sentença já era de todos conhecida, e o ordenança tirou uma pedrita dos arreios assentando o fio da faca. Lambia os beiços pensando no sangue que ia jorrar de orelha a orelha. As labaredas do fogo iluminavam a cena bárbara. E o índio quieto. O afobamento do ordenança fez com que Gumercindo dissesse: “Párate. Este no es servicio para um boludo como tu.” A coragem do homem fez com que a sentença fosse reformada. “Larguénlo! Le den um buem caballo. Sus armas. E que se vaya juntar a su gente. Porque se matamos a los valientes, los cobardes es que no van defender los ideales.” E o índio quieto. O ordenança de aproxima da cara do índio, e não se contém: “Pucha Che, tu eres mucho más valiente do que feo”.


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Galo Velho

Camaquã, Rio Grande do Sul, Brazil
Fundado em 05/07/1980, assim foi escrito em sua 1ª página do 1º Livro: “O que importa neste GALPÃO é que cada um saiba ser irmão do outro. Aqui terminou o patrão e o empregado; o pobre e o rico, o branco e o preto; o burro e o inteligente; o culto e o ignorante. Aqui é a INVERNADA DA AMIZADE e tem calor humano como tem calor de fogo. Nosso Galpão nem porta têm, está sempre aberto para quem buscar um abrigo. Neste Galpão os corpos cansados da lida diária encontrarão sempre um banco para descansar, e um mate amargo para a sede matar. Aqui o frio do Minuano não encontra morada, temos toda a Sant’Anna irmanada. A cada nascer de uma madrugada há de encontrar alguém aquentando fogo, buscando nas cinzas do passado, o Galo Velho que será, quando partir para a Invernada do Esquecimento. Ninguém será esquecido, se passar nesta vida vivendo como o nosso “Galo Velho” viveu, a todos querendo, sem nunca ter o mal no coração.”