ABRINDO E FECHANDO A PORTEIRA.
Gumercindo Saraiva.
"Mas valiente do que feo".
Seus
feitos foram notáveis na Revolução de 1893, combatendo de espada em punho o
governo impopular de Júlio de Castilhos. Eis a história que os livros me contaram,
assinada por Odilon Abreu.
Corria
o mês de fevereiro de 93. O rebuliço no Rio Grande alvoroçava caudilhos e
caudilhetes contrários ao governo castilhista. Gumercindo Saraiva era
estancieiro forte no Uruguai e Santa Vitoria do Palmar. Filho de pais brasileiros
se achava no direito de pelear junto aos federalistas. Com uma tropa bem
montada e armada, o caudilho cruzou a fronteira ocultando-se no rincão de Ana
Correia, entre os rios Jaguarão e Jaguarão-Chico. Vinha para se encontrar com o
Cel. Jóca Tavares, a fim de engrossar as tropas rebeldes, que já andavam por
volta de três mil homens.
Quando
esse pintor bizarro jogou o Sol no abismo do fim do mundo começou a colorir o
poente, e a tropa se acantonou numa canhada bonita. Gumercindo distribuiu as
ordens para o acampamento. Pelo sul um caponete abrigava e ocultava a gente do
caudilho. Na chapada que se erguia ao norte, Gumercindo postou uma sentinela
para proteger de qualquer surpresa o sossego dos insurretos castelhanos.
- Todo listo, mi
comandante! Disse marcialmente o ordenança de Gumercindo, um tipo melenudo, com
barba de semana e meia esse ordenança. Dente de ouro exibido na linha de frente
da boca. Chapéu com barbicacho de fleco e aba tapeada na testa. O beiço rachado
lhe dava uma voz fanhosa. “Todo listo, mi comandante.” De fato, em pouco tempo
os vaqueanos já estavam com uma rês carneada, a título de requisição guerreira. E nessas
ocasiões o puxirão se faz de vereda. Se põe esperto o mais lerdo dos
andarengos. Vala grande cavada no chão, as carneadeiras descobrindo os espetos
nos galhos retos das guajuviras, lenha farta, fogo grande, carne gorda e caneco
de branca de mão em mão.
Mate , charla e patacoada. Palas no chão, mão nas cartas, e na
ponta da língua os versos debochados do truco. E de repente, atenção! O
sentinela firma os olhos e descobre no horizonte um vulto que vem crescendo.
Num galope chasqueiro vem um gaudério batendo estribos. Ele dá o aviso: “Se
aprochega um cavaleiro Dom Gumercindo”
Então, de relancina o chefe forma uma patrulha com dez voluntários. Ordena uma
espera na ponta do capão pra deter o intrometido. No lusco-fusque na noite o
índio ia passando a lo largo, quando se viu cercado. “La fresca, tô perdido,
pensou. E o chasque o patrão não vai chegar ao destino.” Conduzia uma mensagem
trocada entre chefes castilhistas. Preso, foi levado à presença do caudilho.
Não apeou do cavalo. Tipo miúdo e entroncado, com lenço branco no pescoço e
entonado como pica-pau em
tronqueira. Um nariz grandalhão e achatarrado, escondendo um
eito de bigode esfiapado, sem apuro nem jeito. O mulato meio pendendo pro
índio, tinha séria sua cara de lua escarrapachada. Foi logo despido da adaga de
quase metro e do nagão quarenta e quatro. Tilintavam as rosetas das esporas de
papagaio comprido, abraçando a barriga do flete.
Os homens de Gumercindo
se alvorotaram com a petulância do tipo. Foi preciso cinco homens pra
desgrudar o taura do lombo do cavalo. E ele quieto. Gumercindo, ex-delegado de
polícia em Santa Vitória ,
no fim do Império, tinha prática num interrogatório. Tanto podia falar
castelhano, como muito bem o português, mas este só falava com caudilhos de
igual patente. Antes, porém, que Gumercindo começasse a inquirição, o ordenança
se antecipou atrevidaço. “Pucha Che, será que sos tan valiente como feo?” E o
índio quieto. “Quién eres? De donde vienes? Para donde vás? Que andas
haciendo?” Indagou o caudilho. “No le digo porque ando de próprio.” “Sabes com
quiém estás hablando?” “Sei. Com o castelhano bandido Gumercindo Saraiva”. “Si
yo cayeras em tus manos que harias conmigo?” “Le passava o lenço colorado”.
“Maténlo.” Ordena seco Gumercindo. E o índio quieto. A sentença já era de todos
conhecida, e o ordenança tirou uma pedrita dos arreios assentando o fio da
faca. Lambia os beiços pensando no sangue que ia jorrar de orelha a orelha. As
labaredas do fogo iluminavam a cena bárbara. E o índio quieto. O afobamento do
ordenança fez com que Gumercindo dissesse: “Párate. Este no es servicio para um
boludo como tu.” A coragem do homem fez com que a sentença fosse reformada.
“Larguénlo! Le den um buem caballo. Sus armas. E que se vaya juntar a su gente.
Porque se matamos a los valientes, los cobardes es que no van defender los
ideales.” E o índio quieto. O ordenança de aproxima da cara do índio, e não se
contém: “Pucha Che, tu eres mucho más valiente do que feo”.
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